Por diversas razões, são bastante comuns os atrasos na construção de imóveis vendidos na planta.
Para se precaverem dos efeitos jurídicos desse tipo de atraso, quase todas as incorporadoras fazem constar dos compromissos de compra e venda das unidades imobiliárias a previsão de um período de tolerância, que varia de 90 a 180 dias, contados do fim do prazo regular de entrega da obra.
Embora esse tipo de cláusula contratual seja considerada válida, em tese, a validade da estipulação, no caso concreto, é condicionada à prévia e ostensiva informação do comprador quanto à existência e duração do período de tolerância, regra que já vinha sendo aplicada pelo STJ[1], e que restou positivada pela Lei nº 13.786 de 2018, que inseriu o artigo 43-A na Lei 4.591/64 (Lei de Condomínios e Incorporações):
Art. 43-A. A entrega do imóvel em até 180 (cento e oitenta) dias corridos da data estipulada contratualmente como data prevista para conclusão do empreendimento, desde que expressamente pactuado, de forma clara e destacada, não dará causa à resolução do contrato por parte do adquirente nem ensejará o pagamento de qualquer penalidade pelo incorporador. […]
É válido ressaltar ainda que, conforme o artigo 35-A, inciso XII, da Lei nº 13.786, aplicável aos contratos formalizados a partir de 28/12/2018, o prazo de tolerância deverá constar do quadro-resumo do instrumento contratual, para que fique bem visível aos compradores.
Todavia, muitas vezes o período de tolerância acaba sendo extrapolado pela construtora. Nesses casos, o STJ já pacificou o entendimento de que “o prejuízo do comprador é presumido, consistente na injusta privação do uso do bem, a ensejar o pagamento de indenização, na forma de aluguel mensal, com base no valor locatício de imóvel assemelhado, com termo final na data da disponibilização da posse direta ao adquirente da unidade autônoma”[2].
Dito isso, a questão a ser aqui enfrentada é: quando o atraso na entrega do imóvel supera o período de tolerância previsto em contrato, o comprador tem o direito de suspender os pagamentos das parcelas do saldo devedor do negócio que tenham vencimento concomitante ou posterior à data prevista para a entrega do bem?
A reposta é sim! Isso porque, uma vez descumprida pela vendedora a obrigação de disponibilizar a posse do imóvel negociado, na data estipulada (diferível até o fim do prazo de tolerância), ocorre a suspensão automática da exigibilidade das obrigações do comprador, por força do artigo 476 do Código Civil, definidor da chamada exceção do contrato não cumprido, regra segundo a qual “nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”.
Nesse ponto, convém explicar o motivo de se ter aludido acima especificamente à suspensão dos pagamentos das prestações com vencimento programado para a data na qual deveria ocorrer a entrega do imóvel, ou momento ulterior. É que, como ensina a doutrina, o que autoriza a recusa de pagamento, por força da exceção do contrato não cumprido (exceptio non adimpleti contractus), é a interdependência funcional das prestações dos contratantes, de modo que “se ambas as prestações têm de ser realizadas sucessivamente, é claro que não cabe a invocação da exceptio por parte de quem deve em primeiro lugar, pois que a do outro ainda não é devida; mas, ao que tem de prestar em segundo tempo, cabe o poder de invocá-la, se o primeiro deixou de cumprir”[3].
O STJ já teve a oportunidade de se pronunciar sobre a aplicabilidade da exceptio em contratos que preveem obrigações com vencimentos sucessivos:
[…] se há sucessividade no adimplemento das obrigações, aquele que deve cumprir a prestação por primeiro não pode, uma vez demandado, justificar seu inadimplemento com substrato na alegada mora do autor. Por consectário, o contraente obrigado a cumprir por primeiro a sua prestação somente poderá exercer a sua pretensão, necessariamente, depois de se desincumbir de sua obrigação. Somente a partir daí, sua pretensão (no caso, executiva) passa a ser exigível e exercitável. […][4]
Em termos mais simples, se a obrigação pecuniária (de dar dinheiro) já estava vencida antes da data prevista para a entrega do imóvel, não há suspensão de sua exigibilidade, mesmo que o prazo de entrega da unidade seja posteriormente ultrapassado, pois aquela obrigação (pecuniária), por ser devida primeiro, nunca esteve atrelada ao recebimento da posse do imóvel, que ocorreria somente depois. Assim, se, mesmo com o atraso, o comprador desejar manter o contrato, terá de pagar a prestação que já devia antes da data prevista para a entrega das chaves, e com juros moratórios.
Também é válido frisar que a exceção do contrato não cumprido não tem o efeito de extinguir a obrigação do contratante que dela se ampare (no caso o comprador). Ao revés, como ensina Ricardo Fiúza, “constitui apenas uma oposição temporária do devedor à exigibilidade do cumprimento de sua obrigação enquanto não cumprida a contraprestação do credor”[5].
Assim, purgada a mora da vendedora (art. 401, I, Código Civil), isto é, sanada a inadimplência contratual por parte da incorporadora, com a disponibilização do imóvel concluído, em conformidade com o projeto e com o respectivo “Habite-se”, restaura-se, também de forma automática, a exigibilidade da obrigação de pagar o saldo devedor.
A propósito, há recente decisão do STJ que se faz digna de nota, por ter afastando a obrigação da incorporadora de ressarcir os danos decorrentes do atraso da obra, em razão de não terem os compradores quitado o saldo devedor, após a obtenção do “Habite-se”:
[…] 10. Nos termos do Tema 996/STJ, o atraso na entrega do imóvel gera para o adquirente indenização correspondente ao valor locativo. 11. Necessidade de se fazer distinção para o caso concreto, tendo em vista o comportamento contraditório dos promitentes compradores, que buscaram reprovação para o atraso da incorporadora, pleiteando lucros cessantes, mas também praticaram conduta reprovável contratualmente, ao deixarem de quitar o saldo devedor após a obtenção do “Habite-se”. 12. Aplicação do princípio da boa-fé objetiva ao caso, na concreção da fórmula jurídica “tu quoque”. 13. Afastamento da condenação da incorporadora ao pagamento de indenização por lucros cessantes. […][6]
De mais a mais, veja-se que a suspensão da exigibilidade das prestações do preço do imóvel não significa o congelamento de seu valor nominal. Embora fiquem isentas de juros, elas continuam sofrendo correção monetária, já que se entende que a única finalidade da incidência da correção é preservar o valor real da obrigação, compensando a perda de valor da moeda. O índice de correção monetária aplicado deve ser o INCC ou IPCA, aquele que for menor no período[7].
Por isso, aos compradores que decidam interromper os pagamentos, em virtude do atraso da entrega de sua unidade, recomenda-se que apliquem o capital correspondente em investimentos de boa liquidez e segurança, a fim de que obtenham ganhos que compensem a correção monetária que continuará incidindo sobre os seus saldos devedores.
Fonte: Advogado Yago de Carvalho Vasconcelos